De onde veio o mote da peça de Gil Vicente, A farsa de Inês Pereira, “mais quero asno que me leve que cavalo que me
derrube”?
Trata-se de um mote que foi
dado por algumas pessoas descrentes no talento de Gil Vicente, servindo, assim,
como ponto de partida para a criação da farsa.
O teatro de Gil Vicente era algo inovador e por isso muitas
pessoas acreditavam que ele plagiava suas peças. Audacioso, Gil Vicente aceita
o desafio, surgindo deste modo “A farsa de Inês Pereira”.
A farsa já se inicia com uma explicação do autor sobre
sua origem, como vemos no trecho a seguir:
A
seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso Rei Dom
João, o terceiro do nome em Portugal, no seu convento de Tomar. Era do Senhor
de 1523. O seu argumento é que, porquanto duvidavam certos homens de bom saber
se o autor fazia de si mesmo estas obras, ou se a furtava de outros autores,
lhe deram este tema que fizesse, scilicet, um exemplo comum que dizem: “Mais
quero asno que me leve, que cavalo que me derrube.” E sobre este motivo se fez
esta farsa. (VICENTE, p.61. 2002)
Assim, Gil Vicente constrói
a farsa em cima do mote que, diga-se de passagem, é mais do que bem
desenvolvido ao longo da história, pois ele usa dos tipos sociais e de um
enredo comum para surpreender o público com seu jeito irônico de fazer teatro.
Inês é uma moça por casar e
que possui o sonho de ter para marido um “homem avisado/ ainda que pobre e
pelado.” (VICENTE, p.68, 2002), ou seja, o mais próximo possível de um fidalgo,
pois ela é uma burguesinha provinciana. Acontece que Inês recebe o seu primeiro
pretendente, Pero Marques (asno que me carregue) e não o aceita de forma
alguma, zombando dele, pois apesar de ter dinheiro, Pero é um camponês muito
simples que nem ao menos sabe usar uma cadeira.
Desta forma, aparece em sua
casa dois judeus casamenteiros e lhe iludem descrevendo o marido que Inês
sempre quis: um escudeiro educado, que sabe cantar e tocar instrumento e que
possui maneiras gentis. Assim, Brás da Mata (cavalo que me derrube), um
interesseiro que apenas quer dar o golpe em Inês, tenta conquistá-la com sua
boa lábia, pois o casamento iria lhe tirar da miséria, afinal não tinha
dinheiro nem mesmo para pagar o seu criado.
Encantada, Inês se casa com
Brás da Mata, mas descobre neste casamento todo o desgosto do mundo, passando a
desejar a morte do marido. Ele não a deixa ir a lugar algum e nem mesmo olhar
pela janela, Inês passa a viver como uma prisioneira. Eis aqui então uma parte
do mote bem desenvolvida: Brás da Mata é como um cavalo, elegante e bonito, mas
que derruba Inês. Em busca de glória, Brás vai para a guerra lutar contra os
mouros e acaba morrendo de forma desonrosa e Inês vê-se livre do seu odioso
casamento.
Mais experiente, Inês decide
que se casará apenas com um homem que faça todas as suas vontades, e assim,
volta a aparecer em cena Pero Marques, que como podemos perceber é o asno que a
carrega. Marido mais bondoso que Pero não existe, Inês é livre para fazer o que
quer, pois ele só quer lhe agradar. Aproveitando de toda essa liberdade e da
ignorância do marido, Inês comete adultério com um antigo namorado que se
tornara Ermitão, um ermitão que reza para o deus do amor.
Tamanha é a ingenuidade de
Pero Marques, que, quando Inês diz que o ermitão está muito sozinho, que ela
quer lhe fazer companhia, ele se dispõe a levá-la nas costas para atravessar um
rio, pois a esposa dissera-lhe que estava grávida e se tomasse friagem poderia
perder o bebê.
Inês se vinga do primeiro
casamento aproveitando-se do segundo marido e durante esta travessia vai
cantando e pedindo para que Pero a responda. Sua canção é cheia de ironia, como
podemos perceber no trecho a seguir:
Inês: Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos amo;
Sempre fostes percebido
pera gamo.
Carregado ide, noss amo
Com duas lousas
Pero: Pois assi se fazem as cousas
Inês: Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero;
Sempre fostes percebido
pera cervo.
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas
Pero: Pois assi se fazem as cousas.
(VICENTE, p.102-103, 2002)
Inês
chama ao marido de “cervo”, dando a ambigüidade de ser ele um servo e também um
animal com chifres, e, alegremente, Pero vai respondendo-a no decorrer do
caminho. Esta peça mostra a grande criatividade de Gil Vicente, que desenvolveu
brilhantemente o mote que lhe foi dado, usando de todos os elementos que
caracterizam o teatro vicentino.
Referências bibliográficas:
VICENTE, Gil. O auto da barca do inferno. In:
Série bom Livro. 5ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2002.